Hoje lembrei do poeta Vinicius de Moraes...
Essa Crônica li ha muitos anos...
Hoje ao reler senti a mesma emoção quando a li pela primeira vez
Você em alguma frase vai se lembrar de seu pai e vai se emocionar...
O DIA DO MEU PAI - Vinicius de Moraes
Rio de Janeiro
Faz hoje nove anos que Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, homem pobre mas
de ilustre estirpe, desincompatibilizou-se com este mundo. Teve ele, entre
outras prebendas encontradas no seu modesto, mas lírico caminho, a de ser meu
pai. E como, ao seu tempo, não havia ainda essa engenhosa promoção (para usar
do anglicismo tão em voga) de imprensa chamada "O Dia do Papai" (com
a calorosa bênção, diga-se, dos comerciantes locais), eu quero, em ocasião,
trazer nesta crônica o humilde presente que nunca lhe dei quando menino; não só
porque, então, a data não existia, como porque o pouco numerário que eu
conseguia, quando em calças curtas, era furtado às suas algibeiras; furtos
cuidadosamente planejados e executados cedo de manhã, antes que ele se
levantasse para o trabalho, e que não iam nunca além de uma moeda daquelas
grandes de quatrocentos réis. Eu tirava um prazer extraordinário dessas
incursões ao seu quarto quente de sono, e operava em seus bolsos de olho
grudado nele, ouvindo-lhe o doce ronco que era para mim o máximo. Quem nunca
teve um pai que ronca não sabe o que é ter pai.
Se Clodoaldo Pereira da Silva Moraes e eu trocamos dez palavras durante a
sua vida, foi muito. Bom dia, como vai, até a volta - às vezes nem isso. Há
pessoas com quem as palavras são desnecessárias. Nos entendíamos e amávamos
mudamente, meu pai e eu. Talvez pelo fato de sua figura emocionar-me tanto,
evitei sempre pisar com ele o terreno das coisas emocionais, pois estou certo
de que, se começássemos a falar, cairíamos os dois em pranto, tão grandes eram
em nós os motivos para chorar: tudo o que podia ter sido e que não foi; tudo o
que gostaríamos de dar um ao outro, e aos que nos eram mais caros, e não
podíamos; o orgulho de um pai poeta inédito por seu filho publicado e premiado
e o desejo nesse filho de que fosse o contrário... - tantas coisas que faziam
os nossos olhos não se demorarem demais quando se encontravam e tornavam as
nossas palavras difíceis. Porque a vontade mesmo era a de me abraçar com ele,
sentir-lhe a barba na minha, afagar-lhe os raros cabelos e prantearmos juntos a
nossa inépcia para construir um mundo palpável.
De meus amigos que conheceram meu pai, talvez Augusto Frederico Schmidt e
Otávio de Faria sejam os que melhor podem testemunhar de sua paciência para com
a vida e da enorme bondade do seu coração. E de sua generosidade. Fosse ele um
homem rico, e nunca filhos teriam tido mais. Sempre me lembra os Natais
passados na pequena casa da ilha do Governador, e a maratona que fazíamos, meus
irmãos e eu, quando o bondinho que o trazia do Galeão, onde atracavam as
barcas, rangia na curva e se aproximava, bamboleante e cheio de luzes, do ponto
de parada junto à grande amendoeira da praia de Cocotá. Eram pencas de
presentes, por vezes presentes de pai abastado, como o jogo de peças de armar,
certamente de procedência americana, com que me regalou e com que construí,
anos a fio, pontes, moinhos, edifícios, guindastes, e tudo o mais. E os
fabulosos Almanaques do Tico-Tico, lidos e relidos, e de onde, uma vez exaurida
a matéria, recortávamos as figuras queridas de Gibi, Chiquinho, Lili e Zé
Macaco.
Como poeta, meu pai foi um pós-parnasiano com um pé no simbolismo. É conto
familiar que Bilac, seu amigo, animou-o a publicar seus versos, que as mãos
filiais de minha irmã Letícia deveriam, depois, amorosamente, copiar e reunir
num grande caderno de capa preta. Há um soneto seu que me celebra ainda no
ventre materno. Eu também escrevi em sua memória uma elegia em lágrimas, no
escuro de minha sala em Los Angeles, quando, no dia 30 de julho de 1950, a voz
materna, em sinistras espirais metálicas, anunciou-me pelo telefone
intercontinental, às três da madrugada, a sua morte.
Meu pai e seus irmãos, ele o primeiro da direita pra esquerda
(1902 + 1979)
Muito lindo!
ResponderExcluirOlá, sabia que você seria tocado por essa crônica, a poesia que também cita o pai é muita linda, noutra oportunidade coloco noutro post
ExcluirGrande abraço.